Samstag, 6. August 2011






















A consciência que te acompanha no que vais sendo é o puro registo disso que vais sendo para o poderes ler, se quiseres, depois de já ter sido. Mas no instante de seres o que és, o que és é apenas, por uma decisão anterior ao decidires. O que és é-lo onde a tua realidade profunda em profundeza obscura se realizou. O que és é-lo no absoluto de ti. A consciência testifica-nos apenas como o ser privilegiado que sabe o que é por aquilo que vai sendo e pode assim reconverter-se à posse iluminada disso que vai sendo. A consciência constata mas não interfere senão para se não ser mais o que se foi, ou mais rigorosamente, para se não querer ser o que se é - o que é ser-se ainda, embora de outra maneira.
Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos actos que me presentificam e da consciência desses actos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que na origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam.

Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'

Donnerstag, 4. August 2011



















o que é que eu faço
com a tua presença
perpétua penetrante
permanente perdente

o que é que eu faço
com toda a tralha expulsa de mim
pensamentos presenças
poemas palavras perdidas

o que é que eu faço
com o espaço que sobra
o tempo que sobra
o sentimento que sobra

o que é que eu faço
com o vazio que sobra
com o silêncio que sobra
com a falta que me fazes

o que é que eu estou a fazer,
a perguntar justo a ti?

20/04/006
ondaJazz

Sonntag, 20. Februar 2011



O horizonte das palavras
Sem direcção, sem caminho

escrevo esta página que não tem alma dentro.

Se conseguir chegar à substância de um muro

acenderei a lâmpada de pedra na montanha.

E sem apoio penetro nos interstícios fugidios

ou enuncio as simples reiterações da terra,

as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.

Tentarei construir a consistência num adágio

de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.

E na substância entra a mão, o balbucio branco

de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,

um organismo verde aberto sobre o mar,

as teclas do verão, as indústrias da água.

Eu sou agora o que a linguagem mostra

nas suas verdes estratégias, nas suas pontes

de música visual: o equilíbrio preenche os buracos

com arcos, colinas e com árvores.

Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.

O impronunciável é o horizonte do que é dito.



António Ramos Rosa
ACORDES, QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 81