Sonntag, 3. Oktober 2010

Cordolium



o homem sem coração mastiga sem cessar
página após página dos seus milhares de tomos

misturadas com rúbeo vinho entranha trago atrás de trago
em busca da transubstanciação

pressente o vácuo mediastino o ausente pulsar
em vão expõe a carne buscando o jorrar quente e humano

por vezes parece vislumbrar um bater que já foi seu
por becos e vielas persegue metânicos fogos-fátuos

mas espantado pela aurora volta aos seus incunábulos
folha a folha gole a gole busca a plenitude o sentir


aa

Lhasa de Sela



O texto mais calado

É mais fácil escrever sem as mãos. Todas as pessoas do mundo são escritoras, sobretudo aquelas pessoas que nunca leram Rilke, nem choraram naquela página de Proust que é um manto de palavras sobre as madalenas e as lajes do tempo. Escrever sem as mãos acontece-me quando sei que sou mais, porque sinto que posso ser. A carne frágil das minhas mãos, cheia de febre, é só uma morte espantosa, o que sobra do tempo do mundo que admira o texto mais calado. Olho as fotografias dos meus avós e nelas vejo apenas o silêncio que foi retratado, uma luz que surpreende os meus olhos como se esta decorresse sempre do princípio da noite. Não há um único texto nestes retratos. A minha avó, feita de flor inteira, morreu dentro do meu corpo feito de estilhaços de pétalas e bátegas de vidro; o meu corpo é um buril que desenrola a melancolia. Talvez não importe mais nada a não ser isto. Uma noite longa que me venha consolar de vez em quando com as suas mãos de tecedeira, que me recolha dentro do berço futuro do meu passado, que me faça desaparecer das minhas mãos para as suas.

Sandra Costa

Abriu no colchão as valas possíveis
e enterrou por ordem alfabética
cada parte do corpo: os pêlos
os pântanos as unhas encravadas
e as unhas que outros cravaram pelas coxas.
Estudou cuidadosamente as ondas as horas
para que não restassem dúvidas
sobre os caminhos marítimos
para a noite. Por fim
podou todas as janelas do quarto;
bebeu o vinho;
roeu a carne do quarto
até não sobrar nenhum coração.

catarina nunes de almeida

(arte: Roxanne Jackson: eat your heart out)